DE
FREUD À CONTEMPORANEIDADE: A VITÓRIA DA RELIGIÃO SOBRE O SABER
CIENTÍFICO.
FROM
FREUD TO POSTMODERNITY: THE VICTORY OF RELIGION ON SCIENTIFIC
KNOWLEDGE.
Olivan
Liger de Oliveira
ILPC
– Instituto Latino americano de Psicanálise Contemporânea
Resumo:
Relendo os escritos de Freud O
Mal estar na cultura e O
futuro de uma ilusão,
textos nos quais Freud faz referências ao papel da religião na vida
do homem moderno, o presente artigo busca compreender as mudanças
desde a época que Freud escreveu sobre o tema (1927-1930) no que se
refere ao papel e funções da religião na pós-modernidade. A
expectativa freudiana de que o saber científico desmontaria a
estrutura da religião e proveria o homem do alento necessário para
enfrentar o destino e a natureza não se realizou. O fenômeno
religioso, ao contrário da expectativa de Freud, cresce em
progressão geométrica se posicionando no mesmo nível que o saber
científico. Diante da velocidade das mudanças na contemporaneidade,
a religião adquire novas funções na manutenção da vida do homem
e o seu estar na civilização. O objetivo desse trabalho é refletir
acerca dessas novas funções da religião na contemporaneidade e
seus precedentes.
Palavras chaves:
religião, contemporaneidade, Deus, civilização
Abstract:
Reading Freud's writings Civilization
and its discontents and The
Future of an Illusion, in
which refers to the role of religion in the life of modern man, this
article seeks to understand the changes since the time Freud wrote on
the subject (1927-1930) with regard to the role and functions of
religion in postmodernity. It was Freud's expectation that scientific
knowledge could destroy the structure of religion and provides the
man with the hability to face the fate and nature, was not
realized. The religious phenomenon, on the contrary
to the expectation of Freud, increases strongly positioning itself on
the same level as scientific knowledge. Due to the speed of changes in contemporary society,
religion acquires new functions in the maintenance of human life and
its survival in society . The aim of this paper is to reflect on
these new roles of religion in contemporary society and its
precedents.
Keywords:
religion, postmodernity, God, civilization
Introdução:
A contemporaneidade é um tempo
singular que encerra mudanças em diversos aspectos da vida do
indivíduo e na sociedade. É o resultado de diversas mudanças
sofridas no psiquismo e que alteram o modo de estar no mundo e de
interagir com outrem. Diz respeito aos últimos vinte anos e se faz
acompanhar ou se insere em processos mais amplos como a globalização,
a mundialização. Nela se estabelece uma rede de informações
instantâneas que quebra a barreira do tempo e do espaço e de fluxo
contínuo, suportada pelos avanços constantes da tecnologia e
impactando de forma visível no sujeito contemporâneo. A tecnologia
e o fluxo contínuo de informações contribuem para o isolamento do
sujeito e faz emergir uma sensação de desamparo. O isolamento do
sujeito reflete um enfraquecimento na cultura e na civilização que,
nos dias atuais, parece ser regida pelo paradoxo de viver de forma
civilizada, mas isolado dos demais; viver em liberdade e sob o jugo
do prazer, mas manter ainda assim um convívio civilizado. Com base
nos textos de Freud “O
futuro de uma ilusão” e
“O mal estar na cultura”,
o primeiro, escrito em 1927 e o segundo em 1929 e publicado em 1930,
esse trabalho tende a confirmar algumas afirmações de Freud acerca
da origem psicológica da religião, de como Freud previu o
fenônomeno religioso na contemporaneidade e qual função a religião
tem assumido na contemporaneidade.
Sobre o que Freud infere acerca da
religião:
A religião é um conjunto de
sistemas culturais e de crenças que reflete em uma visão específica de mundo.
Através de seus símbolos, estabelece a relação da humanidade com
a espiritualidade. Suas tradições, símbolos e mitos visam dar um
sentido a vida ou explicar sua origem. Tem eleito um deus poderoso e
criador que gere todas as formas de vida. A religião caminha na
contra mão da razão, pois nada prova, apenas insere o indivíduo num
conjunto de crenças, o qual é adotado pela sua fé. O
desenvolvimento de uma religião está diretamente ligado à cultura
na qual está inserida. Algumas religiões privilegiarão a crença,
enquanto outras, a prática. Uma outra enfatizará a experiência
subjetiva em detrimento da prática comunitária. Assim, pode-se
afirmar que a religião é moldada pela cultura.
O escrito O
Mal estar na cultura foi
uma resposta a Romain Rolland, quando este, através de sua
correspondência com Freud , afirma concordar com a idèia central do
escrito O futuro de uma
ilusão, no qual Freud
afirma ser a religião uma ilusão. Romain Rolland, embora concorde
em parte, contesta-o afirmando apreciar um sentimento oceânico, algo
como uma sensação peculiar de eternidade advinda da religiosidade.
Discorrendo a partir desse ponto,
Freud afirma categoricamente nesse texto que a felicidade não é
parte da criação e que o ser humano está fadado a lidar com a
infelicidade e dor, que para sobreviver no mundo e em sociedade, é
necessário renunciar a grande parte de suas pulsões e sublimar sua
agressividade. Acreditava também que, no futuro, a religião devesse
ser suplantada pelo saber científico. O mundo tecnológico poderia,
com seus múltiplos recursos e com a ciência tornar a religião
obsoleta. A modernidade, época em que Freud discorreu sobre o tema,
propunha superar continuamente toda e qualquer estrutura menos
completa, substituindo as por estruturas plenas e de máxima
completude. No texto citado acima, Freud diz que “o
afastamento da religião está fadado a ocorrer com a fatal
inevitabilidade de um processo de crescimento, e nos encontramos
exatamente nessa junção, no meio dessa fase de desenvolvimento
”
(Freud, p. 57)
O futuro
de uma ilusão tem seu eixo
fundamentado nas vias psíquicas que deram origem à religião. O
homem, em oposição à natureza, tem na religião um mediador que
aplaca sua impotência diante daquilo que não pode evitar. A
vulnerabilidade do ser humano o conduz a humanizar
os elementos da natureza, na tentativa de reduzir sua ansiedade
perante o desconhecido e ameaçador. Mas, essa não é a única
função da religião que Freud explora nesse escrito: o homem,
desde que tem a natureza de interação e
interdependência, está condenado a viver em grupos sociais os quais
têm normas de condutas e regras de convivência, ou seja, os grupos
sociais exigem viver em civilização. Entretanto viver em
civilização é renunciar a uma grande parte das pulsões,
mantendo o homem num estado de
infelicidade e incompletude. A
religião, nesse aspecto, vem atenuar as limitações impostas pela
sociedade, tornando-a mais suportável. E por fim, Freud infere que a
religião tenha uma estreita conexão com os primórdios do
desenvolvimento e o Complexo de Édipo e que a necessidade de um Deus
seja um derivativo da necessidade do pai nos primeiros anos de vida. Freud cita no escrito de 1929:
A derivação das
necessidades religiosas, a partir do desamparo do bebê e do anseio
pelo pai que aquela necessidade desperta, parece-me
incontrovertível, desde que, em particular, o sentimento não seja
simplesmente prolongado a partir dos dias da infância, mas
permanentemente sustentado pelo medo do poder superior do Destino.
Não consigo pensar em nenhuma necessidade da infância tão
intensa quanto a da proteção do pai
Nesse
escrito, Freud descreve
a questão das pulsões e afirma que o homem é destrutivo em sua
natureza, nele habita uma disposição inata e duradoura para
destruição, sendo essa disposição um obstáculo ao convívio
social e que o sentimento de culpa é o que move o homem a permanecer
unido a um grupo e torná-lo cada vez maior. Justifica sua afirmação
buscando sua origem no mito do pai primevo, o assassinato do pai, o
que se correlaciona com o desejo de parricídio no édipo.
Considerando então a natureza
destrutiva humana e seu persistente sentimento de culpa, a religião
teria a função de tentar domesticar essa força destrutiva e
através de seus ritos, reduzir a culpa, possibilitando o convívio
social. Ao mesmo tempo que tem a função de reduzir a culpa, por ser
a prática religiosa geralmente exercida em grupo, necessita, não
redimir e acabar com a culpa, mas mantê-la em níveis ideais que
promova a manutenção do grupo religioso. Aqui estabelece-se um
paradoxo: a religião tem como tarefa reduzir a culpa humana e ao
mesmo tempo mantê-la para que possa existir.
Para Freud, Deus é uma invenção
humana que encontra sua origem na tentativa de dar características
humanas às forças da natureza. Laznik afirma que “Só se pode
amar o outro por aquilo que lhe falta. Mesmo o Outro, o grande Deus,
só pode ser amado pela única coisa que lhe falta: a existência.”
Até
esse ponto, pode-se então descartar a função da religião
como mediadora do encontro
com o divino, com o que está além, o criador e colocá-la no plano
de um repertório de recursos criados para amenizar a dor da
existência humana e moldar o convívio dos homens em grupos sociais.
O
ser humano, nos primórdios do desenvolvimento, experimenta uma
sensação de fascinação e temor diante dos pais, seres superiores
capazes de transmitir toda a segurança à criança. A medida que o
indivíduo cresce, os pais são introjetados na forma de ideal de
ego. Entretanto, esse desejo pelo pai não cessa e se materializa
através de um sentimento de fascinação e temor ao sagrado, a um
pai capaz de livrar o indivíduo do desamparo. O vínculo que une a
humanidade ao sagrado é, portanto, o desamparo. Deus é o pai
idealizado que provê o homem de segurança e apazigua a sua
impotência diante da natureza e do destino.
A
profecia não cumprida.
Para
Freud, no seu texto O
futuro de uma ilusão,
lê-se claro a sua expectativa de que a ciência pudesse
disponibilizar recursos capazes de fazer o homem lidar melhor com as
forças da natureza e com seu destino. A prática científica
objetiva proporcionaria uma compreensão da religião como uma
ilusão.
Entretanto,
parece que o discurso científico da contemporaneidade não é o
suficiente para compreender a religião como ficção e tampouco
confirmar que Deus está morto. Não enfraqueceu e nem dizimou o
vínculo que une a humanidade ao sagrado e trilhando por um caminho
oposto, proveu razões suficientemente fortes para a preservação
desse vínculo. Constata-se na atualidade que ciência e religião
caminham lado a lado. Esse fato fora previsto por Lacan, quando cita
que a religião:
Não
triunfará apenas sobre a psicanálise [ que terá que sobreviver a
ela], triunfará sobre muitas outras coisas também. É inclusive
impossível imaginar quão poderosa é a religião... O real, por
pouco que a ciência ai se meta, vai se estender, e a religião
terá mito mais razões ainda para apaziguar os corações (LACAN,
2005, p.58)
Mas,
o que leva ao fracasso da profecia freudiana? Será que Freud tinha
claro em seus pensamentos, o rumo que a contemporaneidade tomaria?
Fenômenos diversos contribuiram para que a
contemporaneidade se tornasse imprevisível
tomando como ponto de perspectiva, o século passado.
A
contemporaneidade tem como característica a desagregação da
civilização e seus valores, criando uma nova forma de interagir e
uma nova cultura. Os valores que sustentavam a sociedade e a
convivência em grupo tornaram-se fulgazes. Bauman usou o termo
“líquido” para caracterizar os fenômenos da contemporaneidade,
regida pela individualização e privatização. A quebra das
tradições implica diretamente numa desregulação de várias
ordens, incluíndo a social, econômica e política, resultando na
destituição do espaço público, na expansão dos mercados mundiais
e na falência do coletivo. Segundo Bauman:
O
“derretimento dos sólidos”, traço permanente da modernidade,
adquiriu, portanto, um
novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e
um dos principais
efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que
poderiam ter
mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os
sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão
derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os
elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações
coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas
de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações
políticas de coletividades
humanas, de outro (BAUMAN, 2001, p. 12).
Por
outro lado, a ênfase na produção e no poder e a expansão de
mercados mundiais geraram riquezas, riquezas que não trouxeram
felicidade, pelo contrário, parece ter trazido mais infelicidade. O
aumento da riqueza gerou uma taxa maior e crescente de
criminalidade, e um desconforto quanto a incerteza em relação ao
futuro. O reconhecimento do indivíduo na contemporaneidade se faz
através do consumo, não do consumo necessário, mas do consumo de
grifes, de facilidades tecnológicas, de recursos que transformam o
corpo numa prótese, etc. O consumismo parece preencher um vazio
interno que não é mais aceitável nos tempos modernos. E quanto
mais o indivíduo se afasta da felicidade, mais atordoado é por
mensagens de todos os tipos pregando-lhe que tem que ser feliz.
Pílulas da felicidade prometem suprimir a angústia gerada pelo
vazio existencial enquanto vitrines
apelam para o consumo desenfreado com ofertas de produtos mágicos
que prometem mudar o humor e o destino do indivíduo. O prazer, a
felicidade e a liberdade são motes de uma sociedade
contemporânea. As relações são fundamentadas
na provisão de prazer e na liberdade que oferecem aos participantes.
Se algo obstrui o prazer e a liberdade, a relação é sacrificada
sem levar em conta a outra parte. A civilização parece não mais
implicar na renúncia das pulsões, que anteriormente regia o
convívio social, e deve co-existir junto com a realização de boa
parte dos desejos.
Para
grandes vazios, grandes promessas: as drogas lícitas e ilícitas
parecem ganhar um espaço maior na sociedade demonstrada por suas
altas taxas de consumo e pela oferta de drogas cada vez mais
poderosas.
Outro
fenômeno que ocorre nos dias atuais, denominado pela psicanalista
Maria Rita Kehl de teenagização
da cultura, é a manutenção de um estado mental infantil no adulto,
um alongamento da adolescência sem prescrição de término parece
muito comum na contemporaneidade.
No
psiquismo, um gatilho para grandes mudanças na contemporaneidade tem
sua origem na questão da estrutura familiar e na falência da função
paterna. A família, outrora estruturada, com papéis muito claros e
definidos, a partir do fim do século vem gradativamente sofrendo
mudanças. A mulher, antes mãe e dona de casa, ganha seu espaço
fora do lar e escala ascensão profissional juntamente com o marido.
Por compor a renda familiar, ganha autoridade fazendo-se valer do
antigo jargão “ Quem tem [dinheiro], banca”. O homem, destituído
de sua autoridade única, tem agora que assumir novos papéis no seu
dia a dia e compensar a colaboração financeira da mulher,
tornando-se parceiro e colaborador das tarefas domésticas. Os
filhos, precocemente colocados em creches ou instituições
cuidadoras, têm sua educação terceirizada, perdendo a clara
referência dos valores familiares. Dos tantos papéis assumidos pelo
homem e pela mulher resultam num mundo onde o indivíduo não sabe
mais qual o seu espaço, não tem mais papel pré-definido e portanto
são impelidos a lutar pela sua conta e risco para cumprir a sua
natureza de pertencimento numa sociedade competitiva, seletiva
economicamente e socialmente. Assim se constrói o desamparo do homem
contemporâneo.
E
nesse desamparo, que a religião encontra um terreno fértil para
florescer. Segundo o Novo mapa de religiões FGV/CPS, em 2011
relata-se um número de 60 segmentos
religiosos diferentes atuantes no Brasil, sendo que o grupo
evangélico foi o de maior crescimento, que em quarenta anos subiu de
5,2% para 22,2%. Segundo o site noticias.gospelprime.com.br,
em 01/02/2014, evangélicos abrem 14 mil igrejas por
ano, arrecadam diariamente 60 milhões e anualmente 21,5 bilhões de
reais.
Assim,
a expectativa de Freud em 1927 parece ter sido frustrada. O rigor
científico não conseguiu exterminar com a ilusão da religião e
ambas convivem num mesmo espaço na contemporaneidade.
A
função da religião na contemporaneidade
A
religião continua oferecendo ao homem, um pai que lhe dê sentido à
vida, possibilitando um menor sentimento de desamparo e uma esperança
de continuidade de vida. Ainda que o homem esteja exposto às
manifestações da natureza, Deus lhe garante através da religião e
sua prática, um sentido e uma continuidade para sua vida:
A
formação da religião é uma defesa contra o desamparo infantil que
o homem adulto não deixa de perceber em si, em seu sentimento de
vulnerabilidade diante do caráter errático da vida. Assim como
sentiu em criança, é necessário um pai para tornar a vida adulta
viável (Saroldi, 2011, p.67)
Entretanto,
pode-se constatar segundo o Mapa das religiões que a oferta de
religiões aumentou nas últimas décadas, assim como o número de
adeptos. Cada segmento religioso oferece um pai, um deus na medida da
necessidade de cada adepto. O enfraquecimento da função paterna e a
falta de um papel definido do homem na família, faz com que haja a
percepção de diversas nuances desta função, desde a perspectiva
de cada filho. Pais que tentam exercer uma autoridade excessiva para
compensar o seu sentimento de enfraquecimento podem refletir na
oferta de um deus severo e punitivo, como o deus da religião
testemunhas de Jeová. Pais mais liberais e que abrem mão da
autoridade podem gerar a busca de um deus mais acolhedor e menos
autoritário como é o caso das neo-religiões derivadas do oriente
como o messianismo. Pais mais modernos e joviais podem ser
encontrados em religiões evangélicas, nas quais a tribuna é
uma prancha de surf e os pastores são
surfistas, como acontece na Bola
de Neve Church.
Enfim, a oferta de deuses diferenciados em vários e novos segmentos
religiosos se deve à variação da função paterna nas últimas
décadas, refletindo por fim a indefinição de um papel de pai e seus
atributos.
Por
outro lado, o atravessamento pelo édipo nem sempre é alcançado.
Patologias da contemporaneidade incluem os atos-sintomas. Sujeitos
que não foram inscritos na ordem do simbólico, portanto não
introduzidos nas leis civilizatórias, não possuem um superego
consolidado para lhes colocar em um convívio social adequado.
Considerando que o superego é inaugurado concomitantemente com o
recalque primordial e que, isto acontece na passagem pelo édipo e
que hoje, uma parte significativa dos pacientes que frequentam
clínicas de saúde mental, psicologia e psicanálise são pacientes
que se encontram aquém desse registro, a religião vem funcionar
como um superego poderoso externo que toma lugar da lei civilizatória
falida. Essa lei civilizatória falida aparece na impunidade aos
crimes, na transgressão das regras morais e sociais sem ocasionar
consequências, na corrupção dos governantes e no enriquecimento
ilícito tão visível nos tempos atuais. Assim sendo, a religião
cumpre o papel da lei:
Quanto
aos oprimidos pelos ditamos civilizados, a coisa é temerariamente
diferente: se perceberem que, no fundo, as pessoas não acreditam
mais em Deus, talvez sua hostilidade à cultura encontre finalmente
um caminho desimpedido para se expressar. Se não há punição
divina a temer em caso de assassinato, por que não cometê-lo?
(Saroldi, 2011, p. 62)
O
adulto adolescente da contemporaneidade precisa de um pai para
colocar limites à sua rebeldia e transgressão.
Se
no passado, a religião era o lenitivo pela culpa do assassinato do
pai, era a absolvição do pecado original, hoje ela precisa impor a
culpa para conter o homem moderno.
Como
a contemporaneidade implica em vínculos frágeis ou inexistentes,
egocentrismo e solidão, a religião e a prática religiosa pode
exercer a função de união, de criar um sentimento de segurança e
solidariedade inexistente nos dias atuais. Através do ritual
religioso, o grupo se mantem coeso fortalecendo a condição de
pertencimento e de agregação do homem. É o símbolo de uma
grande família diante
do desmantelamento da família original.
O
homem precisa de algum conteúdo que lhe permita constituir
significado, algo que lhe dê sentido à vida. O avanço tecnológico,
a desestruturação da família e a
demanda de rapidez que impede uma consolidação de identidade
impossibilitam o homem de constituir um significado para a vida,
gerando um grande vazio existencial. Para alguns, o alimento é a
forma de preencher esse vazio. Para outros, o uso de drogas e a
adicção é a oferta possível de preenchimento, mas para muitos a
religião vem suprir esse vazio. Aqui enquadramos a religião como
uma prótese que preenche e completa o ser humano.
Freud,
a respeito da religião, buscando similaridades entre a neurose
obsessiva e a prática religiosa, cita: "Poderíamos
nos arriscar a considerar a neurose como uma contrapartida patológica
da formação de uma religião, e a descrever a neurose como uma
religiosidade individual e a religião como uma neurose obsessiva
universal”.
(Freud, 1907). O ato religioso tem sua significação baseada num
significado simbólico, entretanto a maioria dos praticantes são
movidos por motivos inconscientes para a execução desses atos, sem
uma percepção de sua simbologia.
Assim
como a alimentação excessiva e o uso de drogas culminando na
dependência química são comportamentos disfuncionais, a religião,
quando cumpre essa função, também se torna algo que
disfuncionaliza o comportamento e a vida do crente. O único foco
possível na vida do indivíduo é a adoração e a obediência cega
ao pai ofertado pela religião, sacrificando todo e qualquer contato
social, permitindo que sua fé e crença se propague além dos
limites religiosos para o profissional e social. Pode-se considerar
nesse prisma, uma patologia da religião. O pathos
religioso assemelha-se a um estado psicótico quando se constata
indivíduos pregando em praça pública sem nenhuma audiência,
introduzindo o pensamento religioso em outras áreas, fazendo mais
parecer um delirio do que um pensamento racional.
Conclusão:
A
religião, embora considerada uma ilusão, assim como a existência
de um Deus são necessidades na vida contemporânea. Exerce a função
catalizadora, uma cola
que liga o homem às suas origens e ao seu presente. Dá sentido à
um mundo desprovido de significado, introduz o homem ao acolhimento
de um pai, ao mesmo tempo que contém seus impulsos
destrutivos e normatiza a convivência em sociedade.
Restitui um sentido de família num mundo onde prevalece a quebra de
vínculos e o isolamento, atenua o medo de um futuro incerto e
ameaçador no qual o ser humano enfrenta por sua conta e risco. Assim
como o amor, uma estrutura de ficção necessária, a religião e a
existência de Deus, uma invenção do próprio homem, são fenômenos
que devem co-existir na contemporaneidade, com a ciência e a
tecnologia. A contemporaneidade é composta de paradoxos. Embora se
saiba que o amor é uma promessa numa estrutura de ficção, o homem
não é capaz de deixar de amar, o mesmo acontece em relação à
religião, pois embora se compreenda sua existência como uma ilusão,
não se deixa de buscá-la como um alento, um consolo ou uma
contenção, num mundo tão inóspito e hostil, onde o convívio
social, a solidariedade, o respeito ao outro beiram um colapso.
Referências
bibliográficas:
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- FREUD, S. O futuro de uma ilusão. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. O. A. Abreu, trad., Vol. 21, pp. 15-71). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1927)
- _________. Atos obsessivos e práticas religiosas. In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, vol. IX (Trabalho original publicado em 1907)
- _________. O Mal estar na cultura. Porto Alegre: L&PM, 2010 (Trabalho original publicado em 1930)
- KEHL, M. R. A teenagização da cultura ocidental, 1997, disponível em <www.mariaritakehl.psc.br/resultado.php> acessado em 10 de Maio de 2014
- LACAN, J. O triunfo da religião precedido de discurso aos católicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005
- LAZNIK, M. C. Breve relato das ideias de Lacan sobre a histeria. In Reverso, v. 30, nº 55, Belo Horizonte: Junho 2008, disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0102-73952008000100002&script=sci_arttext> acessado em 11 de Maio de 2014
- NERI, M. Novo mapa das religiões. Rio de Janeiro: FGV/CPS, 2011
- SAROLDI, N. O Mal-estar na civilização – as obrigações do desejo na era da globalização. In coleção Para ler Freud. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2011