domingo, 15 de setembro de 2013

UMA NOVA PSICANÁLISE - OU A PSICANÁLISE DA CONTEMPORANEIDADE



Olivan Liger

Setembro/2013


A psicanálise tem como cerne de seu método a livre associação do analisando e a escuta flutuante do analista. Esses dois atos fundamentais do método são frutos de uma análise didática transcorrida durante o treinamento que autoriza o sujeito a se tornar um psicanalista e portanto não podem ser aprendidos num treinamento, senão pela sua conceitualização. Tanto a livre associação quanto a escuta flutuante encerram em si uma certa flexibilidade. É aceitar o que vem... esperar, sem expectativa que algo ressalte de um discurso e que dê sentido a uma cadeia de outros elementos ressaltantes para que haja a interpretação. Essa flexibilidade dos atos analíticos se inserem dentro de um formato, o qual denominamos setting e que já não são tão flexíveis e tem como função reduzir a resistência do paciente, como dizia Freud.

Quando retomamos a história da psicanálise, encontraremos uma hiância entre o que foi feito pelo ser fundante e o que se executa pelo conjunto fundado.

Freud atendia pacientes caminhando nos arredores de Viena. Estendeu o tempo de sessão quando assim achou necessário e atendeu amigos próximos em várias situações. Fez sua auto-análise e morreu sem elaborar alguns de seus conflitos... Lacan, por sua vez, se fez conhecer por sua atuação libidinosa em relação às suas parceiras, pelos seus dois casamentos e também pelo seu narcisismo.

Klein analisou a própria filha e por grande parte da sua vida, manteve com ela um conflito que não foi resolvido até a sua morte.

Podemos dizer que os grandes mestres eram humanos e traziam em suas histórias as mazelas da existência e do existir.

Não só transmitiram o saber psicanalítico, mas também foram referências como seres humanos, como sujeitos constituídos pela falta.

A hiância se faz presente quando percebemos que algumas instituições insistem em manter uma ortodoxia rígida, criam um estereótipo de psicanalista que ao assumir um discurso profundamente técnico e recheado de jargões, renunciam o que de humano são em detrimento de uma posição de discurso de mestre. Não pode existir mestre sem ter um sujeito que o sustente e todo sujeito é da ordem do humano. Trabalham na contra mão da contemporaneidade, que exige não somente mudanças de paradigmas, mas produz novas formas de subjetividades que exigem uma nova posição do psicanalista, e na contra mão dos elementos básicos da técnica psicanalítica, uma certa flexibilidade para inovar, pluralizar e recriar.

Esta é uma questão crucial na metodologia da transmissão do saber psicanalítico que engessa os aspirantes à psicanalistas, promovendo um padrão de discurso inapropriado, estereotipado e não produtivo.

Por ser algo tão peculiar, o ensino e a transmissão da psicanálise requer também de quem transmite, um estar na posição de mestre diferenciado das demais formações.

De todas as formações que lidam com o ser humano, a psicanálise é aquela que lida com o que há de mais profundo na ordem do humano: a angústia, o sofrimento e a verdade individual de cada ser. Como promover alguém à uma posição de psicanalista, sem mostrar-lhe uma referência humana no mestre? O discurso do mestre é antes de mais nada o discurso de um ser humano que direciona seu foco para um determinado conjunto de conhecimentos. Autoriza-se psicanalista quem pelo humano passa e pelo humano se faz um psicanalista.

Quando observamos um conjunto de treinandos em seminários psicanalíticos, observamos um conjunto de seres humanos que apresentam conflitos individuais e grupais, observamos acting-outs todo o tempo, críticas e atos obsessivos. Os sintomas de cada um emergem e promovem uma certa turbulência durante o treinamento. As críticas se agravam quando a idealização é frustrada. A manipulação, o controle neurótico e o jogo infantil que emergem com freqüência devem ser submetidos à análise individual de cada treinando, porém entre a emergência de tais sintomas e a elaboração dos mesmos, há de se ter um olhar humano de quem algo transmite... de quem algo melhor domina: o conhecimento do humano em si mesmo e no outro. Conhecimento nunca completo pautado sempre pela falta constitutiva.

Aquele que se propõe a transmitir a psicanálise tem que ter claro que o conhecimento profundo é um requisito, mas não é o todo. Tomar a parte pelo todo é patológico, é a pràtica perversa institucional. Para transmitir esse saber tão desejado é necessário antes desmontar a idealização do psicanalista estereotipado, e para tanto é preciso mostrar que há um ser humano que sustenta o psicanalista. Um sujeito que também se constituiu pela falta e que pelo recalque é pertencente a um conjunto: o dos neuróticos, na melhor das hipóteses. A única diferença entre o formador e o formando é o domínio maior de um saber e uma análise concluída ou em fase de conclusão que o possibilita um conhecimento maior de sua própria precariedade e por conseqüência, da precariedade do outro.

Aquele que se propõe a se autorizar psicanalista tem que ter claro que o elemento essencial para que alcance o seu objetivo é a sua análise pessoal que revelará a sua verdade e sua condição humana, além de servir de referência de como trabalha um psicanalista. Todos os demais aparatos, como seminários, produção científica, etc., tem como função complementar o que se torna a base de tudo: a análise pessoal ou, neste caso, didática.

O psicanalista não é formado pelo conforto e suntuosidade de uma instituição, as obras de artes espalhadas pelas paredes e uma vasta biblioteca, mas é a interação de um corpo docente devidamente habilitado na transmissão do conhecimento, mas que acima de tudo serve como referência humana, que desmistifica o psicanalista como detentor de um poder ou conhecimento que o coloca acima de qualquer impacto da vivência de sujeito no mundo de atribulações da contemporaneidade, que, de verdade, se preocupa com o aspirante e suas dificuldades, que demonstra ser singular e respeita a singularidade de cada um que aspire se tornar um psicanalista e que faça prevalecer no seu discurso uma autenticidade vital que sirva de referência para aquele que futuramente será seu colega de profissão.

Lacan foi não só um mestre no conhecimento, mas um mestre na autenticidade com a qual circulava desembaraçadamente no seu meio. Um estilo próprio, sem copiar, sem se tornar um estereótipo... um estilo que denotava o quanto sua psicanálise precisava do sujeito e sua constituição única que a sustentasse.

A contemporaneidade exige mais de um psicanalista, exige a ousadia de produzir novos conceitos, de conhecer sua própria história para sustentar seu discurso. É um novo tempo no qual a atuação do psicanalista precisa ir além da técnica, além do molde e recriar dentro de um eixo ideológico que comporta o saber psicanalítico, novas ampliações do saber, do ser psicanalista e do estar no mundo enquanto um sujeito que existe desde sua constituição e que se tornou um psicanalista.

A ortodoxia e a rigidez vão contra a corrente da pós modernidade e o resultado final desse combate é o engessamento da psicanálise e sua transmissão adequada.

Freud é e será sempre a base de todo o saber psicanalítico, porém deixou uma herança de um legado inacabado. A contemporaneidade é o espaço de constituição de novas subjetividades que a teoria freudiana já não pode dar conta. As patologias pré-edípicas pedem novas releituras dos textos freudianos e é através dos herdeiros de Freud que a psicanálise se torna atualizada, renovada e contemporânea. É com Lacan que vamos traduzir o delirio psicótico, com Kernberg poderemos olhar as organizações borderline e os estados limites com uma melhor compreensão e assim por diante.

À instituição cabe hoje entrelaçar saberes, de Freud aos contemporâneos, de tal forma a promover uma visão ampliada do campo de aplicação da psicanálise

A isto, chamamos psicanálise contemporânea.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

SOBRE AS PERVERSÕES




Autor: Olivan Liger
 
 
Encontramos na teoria do desenvolvimento infantil de Freud, o termo “ perverso polimorfo” para designar um estágio infantil constitutivo comum no desenvolvimento, no qual o bebê busca a satisfação imediata de suas pulsões, almejando sempre um estado de prazer. Esta busca está fundamentada pela organização libidinal das zonas erógenas. Num primeiro momento do desenvolvimento, o mundo é introjetado pela boca: lamber, morder, sugar são formas costumeiras de obtenção do prazer na fase oral de desenvolvimento.
A partir daí, o bebê vai descobrindo novas formas de prazer como o olhar e o sorriso da mãe, a qual a criança contempla extasiada, o toque da mãe: o prazer de ser olhado e de olhar, de ser tocado e de tocar.
 
Sob a égide de relações dicotômicas caracterizadas pela exclusividade, a mãe é somente do bebê e para ele. Quando a mãe direciona seu olhar e atenção para outro objeto, a relação exclusiva de inclusão se transforma em exclusão, aquilo que era extremamente prazeroso se transforma subitamente em desprazer. As relações do bebê são operadas de forma narcísica e auto-referente, se posicionando no centro e desprezando o outro enquanto desejante, posicionando o como objeto para o seu prazer.
 
Esta forma primordial de operar suas relações faz do bebê, para Freud, o perverso polimorfo. Perverso por considerar somente a satisfação de seu desejo. A diversidade de formas no qual o prazer é obtido designa a terminologia “polimorfo”. Nesta posição perversa polimorfa repousa a base de construção do perverso adulto.
No continuum de desenvolvimento, esta fase deve ser superada e novas formas de relação deverão destituir a posição primordial perversa polimorfa.
A mãe, que até então estava mergulhada na ilusão de completude narcísica junto ao seu bebê vai retomando a sua vida de mulher, de esposa e dona de casa ou de profissional, iniciando um processo de afastamento penoso para o bebê, que vai se dando conta de não ser o falo da mãe e da existência de outro(s) que entram na ciranda das relações. Para Lacan, é o momento de entrada no primeiro tempo do Édipo. Para Freud, o bebê está lidando com sua agressividade direcionada à mãe na vivência da etapa sádico-canibal da fase oral.
É neste instante que instala-se a função ética no bebê, quando passa a sentir temor de perder o amor e o afeto da mãe. Essa função servirá para a base de fundação do supereu mediante o advento do recalque.
Podemos inferir que a entrada do pai na relação até então dual e o consequente interdito por esse operado se dá sem uma única ação ou palavra do pai. A presença psíquica do terceiro (o pai) se faz pelo afastamento da mãe e pela percepção de que a mãe tem alguém mais a quem ela ama: o pai. O interdito é um ato simbólico que dá marco de entrada da metáfora d'O Nome do Pai, que por homofonia na língua francesa pode significar “o nome do pai” ou ainda “ o não do pai” (nom-du-pére).
A metáfora d'O Nome do Pai marca a entrada no complexo edípico através da circulação do falo, da
introdução da lei, da cultura e da civilização, marca também a definição das estruturas psíquicas na psicanálise. A posição de perverso polimorfo encontrará a frente uma mãe idealizada, detentora de um falo próprio, que no seu discurso e olhar destitui o pai de autoridade. O pai, nessa relação é um resignado, ausente e impotente/omisso diante da mãe/esposa castradora.
 
Toma o cenário edípico uma defesa primitiva, a Verleugnung (denegação, recusa, desmentido). O pai fraco, destituído da função paterna do interdito tem a sua fala e ação aceita aparentemente, mas desafiada e transgredida todo o tempo.
O pai não tem o falo, se o tem está encoberto pela posição fálica materna. Porém, chegará o momento de confronto com a castração da mãe. Se essa criança aceitar a castração materna, terá que aceitar o falo paterno através do seu interdito, portanto para denegar o interdito paterno, a mãe precisa se manter na posição fálica.
Objetos tais como roupas, roupas íntimas, sapatos, bolsas, partes do corpo da mãe servirão como proteção asseguradora da manutenção da posição de mãe falicizada. Desta forma, a castração materna é negada e o olhar da criança fixado nos objetos de anteparo à visão do corpo castrado da mãe serão tomados posteriormente como objetos do fetiche do perverso.
Se o recalque provindo do interdito paterno e da castração define a estrutura neurótica e fará com que o sujeito busque sua erogeneidade numa figura feminina que o remeta à mãe, o mesmo não acontece na perversão. O perverso buscará o seu prazer nos objetos e nas partes do corpo da mãe projetando-o ao longo da sua história. Por ter aceito a castração simbólica de forma a flexibilizá-la diante de suas conveniências e prazeres, o perverso preserva a relação eu-prazer na sua existência, não havendo lugar para o outro, o qual só poderá existir enquanto objeto de seu prazer. A relação incestuosa passa a ser incluída no repertório de prazeres infantis, sustentada pela cumplicidade materna.
 
Para o perverso, perder o seu estatuto de singularidade e unicidade é algo insuportável, por isto recusa a castração a todo custo. O ato sexual é sempre algo conhecido e repetido que denota um imaginário erótico pobre.
 
Com relação ao superego do perverso, não houve a consolidação dessa instância, pois sem o recalque, toda a introjeção das leis morais e civilizatórias foram seriamente prejudicadas. A lei possível ao perverso é a lei externa. Por medo de ser punido, tentará conviver com a lei, desafiando e transgredindo a de tempos em tempos, na surdina, burlando assim, a possibilidade da punição e reafirmando para si mesmo o seu estatuto de não castrado.
 
Cabe sempre ressaltar a diferença do perverso e da estrutura perversa. Traços perversos podem aparecer nas estruturas neuróticas e vice-versa. O espectro da estrutura perversa pode alcançar uma variedade de nuances que vão desde uma simples pré-disposição às perversões à psicopatia, caso este de perversão maligna extremada. Mas, como Freud afirmou em 1905: todas as pessoas impõem determinados atos perversos na obtenção do prazer sexual, sem necessariamente estar sob os domínios da perversão. Podemos ampliar essa afirmação para diversos outros aspectos da nossa vida: da vida privada à vida pública, temos sempre uma ou outra atitude que denota uma certa perversidade, ainda que caibamos no estatuto da neurose.
Comumente, vemos uma gama de perversos “legítimos” na contemporaneidade, juntamente com outras patologias narcísicas. A variedade de não neuróticos tende a se igualar com os “ legítimos” neuróticos. Depois do advento da psicanálise de Lacan, ampliou-se o terreno dos perversos.
O perverso da contemporaneidade escala o poder para assegurar sua não castração, na sua maioria.
O poder assegura o seu estatuto de majestade perversa polimorfa. Quem nunca cogitou a idéia de tratar-se de um perverso quando se depara com notícias de corrupção, abuso de poder e crimes de colarinho branco? O perverso, ao desafiar a lei, impõe ao outro que seja cúmplice, vítima ou testemunha de sua transgressão. Muitas das ações que vemos no dia a dia são neuróticos, que num ambiente propício, onde a lei é denegada, são influenciados pelo poder do perverso, transgridem a lei como cúmplices e acabam como alvo de noticias e punições, enquanto o perverso se entrega ao prazer com o seu sadismo e a afirmação do seu poder. Por outro lado, vemos casos que um mesmo indivíduo se envolve sequencialmente em escândalos como abuso de poder entre outros. Ao longo da história do indivíduo, pode se enumerar diversos eventos que denotam claramente a perversão, muitas vezes no tênue limite da psicopatia.
 
Podemos observar hoje a perversão de uma perspectiva macro; de instituições perversas até nações perversas que designam nações menos desenvolvidas como objetos utilitários para a manutenção do seu poder. Recentes reportagens contam da prática de espionagem dos Estados Unidos da América imposta a países menos desenvolvidos ou não tão recente, sobre a devastação de países do Oriente Médio pelos Estados Unidos, em prol da primazia bélica.
 
A falência d´O Nome do Pai que abre espaço para a falicização da mulher pode ser um dos fatores que incorrem numa maior incidência de perversões e atuações perversas na contemporaneidade, assim como a prática do hedonismo, a cultura narcísica, a inversão dos valores éticos e morais, o princípio de entropia no qual todo discurso é válido são características da pós modernidade que acabam por criar um terreno fértil para a perversão.