Olivan
Liger
Setembro/2013
A
psicanálise tem como cerne de seu método a livre associação do
analisando e a escuta flutuante do analista. Esses dois atos
fundamentais do método são frutos de uma análise didática
transcorrida durante o treinamento que autoriza o sujeito a se tornar
um psicanalista e portanto não podem ser aprendidos num treinamento,
senão pela sua conceitualização. Tanto a livre associação quanto
a escuta flutuante encerram em si uma certa flexibilidade. É aceitar
o que vem... esperar, sem expectativa que algo ressalte de um
discurso e que dê sentido a uma cadeia de outros elementos
ressaltantes para que haja a interpretação. Essa flexibilidade dos
atos analíticos se inserem dentro de um formato, o qual denominamos
setting e que já não são tão flexíveis e tem como função
reduzir a resistência do paciente, como dizia Freud.
Quando
retomamos a história da psicanálise, encontraremos uma hiância
entre o que foi feito pelo ser fundante e o que se executa pelo
conjunto fundado.
Freud
atendia pacientes caminhando nos arredores de Viena. Estendeu o tempo
de sessão quando assim achou necessário e atendeu amigos próximos
em várias situações. Fez sua auto-análise e morreu sem elaborar
alguns de seus conflitos... Lacan, por sua vez, se fez conhecer por
sua atuação libidinosa em relação às suas parceiras, pelos seus
dois casamentos e também pelo seu narcisismo.
Klein
analisou a própria filha e por grande parte da sua vida, manteve com
ela um conflito que não foi resolvido até a sua morte.
Podemos
dizer que os grandes mestres eram humanos e traziam em suas histórias
as mazelas da existência e do existir.
Não
só transmitiram o saber psicanalítico, mas também foram
referências como seres humanos, como sujeitos constituídos pela
falta.
A
hiância se faz presente quando percebemos que algumas instituições
insistem em manter uma ortodoxia rígida, criam um estereótipo de
psicanalista que ao assumir um discurso profundamente técnico e
recheado de jargões, renunciam o que de humano são em detrimento de
uma posição de discurso de mestre. Não pode existir mestre sem ter
um sujeito que o sustente e todo sujeito é da ordem do humano.
Trabalham na contra mão da contemporaneidade, que exige não somente
mudanças de paradigmas, mas produz novas formas de subjetividades
que exigem uma nova posição do psicanalista, e na contra mão dos
elementos básicos da técnica psicanalítica, uma certa
flexibilidade para inovar, pluralizar e recriar.
Esta
é uma questão crucial na metodologia da transmissão do saber
psicanalítico que engessa os aspirantes à psicanalistas, promovendo
um padrão de discurso inapropriado, estereotipado e não produtivo.
Por
ser algo tão peculiar, o ensino e a transmissão da psicanálise
requer também de quem transmite, um estar na posição de mestre
diferenciado das demais formações.
De
todas as formações que lidam com o ser humano, a psicanálise é
aquela que lida com o que há de mais profundo na ordem do humano: a
angústia, o sofrimento e a verdade individual de cada ser. Como
promover alguém à uma posição de psicanalista, sem mostrar-lhe
uma referência humana no mestre? O discurso do mestre é antes de
mais nada o discurso de um ser humano que direciona seu foco para um
determinado conjunto de conhecimentos. Autoriza-se psicanalista quem
pelo humano passa e pelo humano se faz um psicanalista.
Quando
observamos um conjunto de treinandos em seminários psicanalíticos,
observamos um conjunto de seres humanos que apresentam conflitos
individuais e grupais, observamos acting-outs todo o tempo, críticas
e atos obsessivos. Os sintomas de cada um emergem e promovem uma
certa turbulência durante o treinamento. As críticas se agravam
quando a idealização é frustrada. A manipulação, o controle
neurótico e o jogo infantil que emergem com freqüência devem ser
submetidos à análise individual de cada treinando, porém entre a
emergência de tais sintomas e a elaboração dos mesmos, há de se
ter um olhar humano de quem algo transmite... de quem algo melhor
domina: o conhecimento do humano em si mesmo e no outro. Conhecimento
nunca completo pautado sempre pela falta constitutiva.
Aquele
que se propõe a transmitir a psicanálise tem que ter claro que o
conhecimento profundo é um requisito, mas não é o todo. Tomar a
parte pelo todo é patológico, é a pràtica perversa institucional.
Para transmitir esse saber tão desejado é necessário antes
desmontar a idealização do psicanalista estereotipado, e para tanto
é preciso mostrar que há um ser humano que sustenta o psicanalista.
Um sujeito que também se constituiu pela falta e que pelo recalque é
pertencente a um conjunto: o dos neuróticos, na melhor das
hipóteses. A única diferença entre o formador e o formando é o
domínio maior de um saber e uma análise concluída ou em fase de
conclusão que o possibilita um conhecimento maior de sua própria
precariedade e por conseqüência, da precariedade do outro.
Aquele
que se propõe a se autorizar psicanalista tem que ter claro que o
elemento essencial para que alcance o seu objetivo é a sua análise
pessoal que revelará a sua verdade e sua condição humana, além de
servir de referência de como trabalha um psicanalista. Todos os
demais aparatos, como seminários, produção científica, etc., tem
como função complementar o que se torna a base de tudo: a análise
pessoal ou, neste caso, didática.
O
psicanalista não é formado pelo conforto e suntuosidade de uma
instituição, as obras de artes espalhadas pelas paredes e uma vasta
biblioteca, mas é a interação de um corpo docente devidamente
habilitado na transmissão do conhecimento, mas que acima de tudo
serve como referência humana, que desmistifica o psicanalista como
detentor de um poder ou conhecimento que o coloca acima de qualquer
impacto da vivência de sujeito no mundo de atribulações da
contemporaneidade, que, de verdade, se preocupa com o aspirante e
suas dificuldades, que demonstra ser singular e respeita a
singularidade de cada um que aspire se tornar um psicanalista e que
faça prevalecer no seu discurso uma autenticidade vital que sirva de
referência para aquele que futuramente será seu colega de
profissão.
Lacan
foi não só um mestre no conhecimento, mas um mestre na
autenticidade com a qual circulava desembaraçadamente no seu meio.
Um estilo próprio, sem copiar, sem se tornar um estereótipo... um
estilo que denotava o quanto sua psicanálise precisava do sujeito e
sua constituição única que a sustentasse.
A
contemporaneidade exige mais de um psicanalista, exige a ousadia de
produzir novos conceitos, de conhecer sua própria história para
sustentar seu discurso. É um novo tempo no qual a atuação do
psicanalista precisa ir além da técnica, além do molde e recriar
dentro de um eixo ideológico que comporta o saber psicanalítico,
novas ampliações do saber, do ser psicanalista e do estar no mundo
enquanto um sujeito que existe desde sua constituição e que se
tornou um psicanalista.
A
ortodoxia e a rigidez vão contra a corrente da pós modernidade e o
resultado final desse combate é o engessamento da psicanálise e sua
transmissão adequada.
Freud
é e será sempre a base de todo o saber psicanalítico, porém
deixou uma herança de um legado inacabado. A contemporaneidade é o
espaço de constituição de novas subjetividades que a teoria
freudiana já não pode dar conta. As patologias pré-edípicas pedem
novas releituras dos textos freudianos e é através dos herdeiros de
Freud que a psicanálise se torna atualizada, renovada e
contemporânea. É com Lacan que vamos traduzir o delirio psicótico,
com Kernberg poderemos olhar as organizações borderline e os
estados limites com uma melhor compreensão e assim por diante.
À
instituição cabe hoje entrelaçar saberes, de Freud aos
contemporâneos, de tal forma a promover uma visão ampliada do campo
de aplicação da psicanálise
A
isto, chamamos psicanálise contemporânea.
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